Homenagem à escritora, pesquisadora e editora que foi eleita para a Academia Brasileira de Letras
Devo a Heloisa Buarque de Hollanda um trabalho que marcou minha trajetória profissional. A pesquisa e publicação das cartas de Caio Fernando Abreu. Foi um trabalho que me consumiu uns bons dois anos e para o qual eu tive a assistência de figuras imprescindíveis à realização do projeto, de Fábio Fabricio Fabretti a Luis Francisco Wasilewski.
A primeira ideia desse trabalho havia surgido numa colaboração entre Heloisa e Luciano Alabarse, homem de teatro e gestão cultural em terra gaúcha, amigo geracional de Caio. Naquele momento, a preservação dos papeis do Caio estava confusa, hoje seu acervo está no Delfos da PUC-RS. Contando com o apoio de Alabarse, Heloisa começou a procurar a correspondência ativa e passiva (epa!) de Caio, encarregando Armando Freitas Filho de escarafunchar a Casa de Rui Barbosa e Cristiane Costa a encontrar o que fosse possível através dos contatos com quem tivesse cartas do Caio.
A fuçada que Armando deu nos arquivos do Museu da Literatura da Rui Barbosa revelou uma correspondência passiva dele com colegas escritores e escritoras, um conjunto de cartas que ele mesmo doara à Rui Barbosa, via Flora Süssekind.
Essa correspondência vazou para a imprensa, o que causou um rebu danado. Sérgio Sant’Anna ficou puto com a exposição. Mas, como diria um antigo – “hoje estão todos mortos”.
Logo se viu que o projeto devia restringir-se à correspondência ativa.
Num certo ponto, Heloisa me propôs assumir o projeto, no lugar de Cristiane.
Eu estava fazendo pós-doutorado com ela na UFRJ. O meu tema era literatura e mercado, uma projeção teórica do que eu vivia: a tensão (conceitual mesmo) entre a experiência literária no espaço dos especialistas e a experiência literária na sociedade mais ampla. No final das contas, o que me interessava era a crônica e/ou historização da vida literária e nada melhor que um trabalho com correspondência (epistolografia) para contribuir com o mapeamento da vida literária das décadas de 1970 a 1990 no Brasil. Nosso guia era Brito Broca.
Uma pesquisa sobre o aqui e agora da dinâmica cultural – essa sempre foi a linha do que se pode chamar, se quiserem, ela não iria gostar da expressão careta, “magistério de Heloisa”.
O volume de Cartas do Caio por mim organizado fez um sucesso muito grande, não só entre quem já era leitor do Caio, mas também ajudou a angariar mais leitores de sua obra. Vai ser sempre uma inspiração para pessoas que cultivam a sensibilidade, que estejam de algum modo engajadas numa autoeducação dos cinco sentidos.
No entanto, com aquele volume eu não pretendia dar a palavra final sobre o corpus total da correspondência, jamais poderia. E com efeito de lá para cá a bibliografia das cartas de Caio se expandiu, com os fundamentais livros de Paula Dip.
Um trabalho que me apraz: fuçar arquivos de escritores.
Foi assim que, sob a supervisão da Heloisa Buarque de Hollanda, juntei teoria e prática no meu trabalho.
Caio Fernando Abreu era por natureza um tipo de autor que transitava naquela linha incerta que divide a literatura dos especialistas da literatura dos amantes de literatura.
Havia uma conexão mais antiga e profunda entre Heloisa e Caio F. Ela própria, Silviano Santiago e Flora Süssekind foram os críticos que, no Rio de Janeiro, consolidaram o juízo de como aquele autor era bom. Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll – vieram numa onda, que trazia também Ana Cristina Cesar. Era uma literatura da intimidade do eu-performance, escarpada e “woke” (politicamente desperta), de gênero (gender) instável. Em matéria de gênero (genre), dos três, Caio era o mais apegado à estabilidade da forma – o conto, o romance, a peça de teatro.